Eucleia:
Para quem não a conhece, aqui fica o desafio: como é que a Helena
se apresenta enquanto escritora? E enquanto leitora, quais as suas
referências mais marcantes e as suas preferências?
Helena
Filas Afonso: Enquanto escritora interessa-me não inventar,
interessa-me fixar o pouco, o excesso, o absurdo, afinal o normal
despido de adereços.
Não
sei a que linhagem pertencerá o que escrevo, para que fontes remete.
Faço por não envergonhar os livros que me encantaram, mas é tarefa
difícil e muito exigente.
É
difícil falar em referências marcantes e preferências.
Simplificando,
vou apenas mencionar alguns que me “desconformaram”: Rui Cinatti,
Botto, O’Neill, Ruy Belo, Nuno Bragança, Luiz Pacheco, Cervantes,
Clarice Lispector, Tchéchov, Shakespeare, Prévert, Keats,
Woodsworth, Boris Vian, Bukowski, Carver, Edgar Allan Poe, José
Angel Valente, Cinthia Ozsik, Danill Harms, Beckett, Kipling…tanto
homem e faltam ainda tantos e tantas!
Antes
de tudo, que para mim não foi o início mas é para sempre, temos os
gregos e os romanos. Maravilham os seus textos e nunca mais os
largamos! O Génio está todo lá! É impossível que não marquem a
ferro quem os lê.
Mark
Twain, Graham Greene, Françoise Sagan, Patricia Higthsmith, Bernard
Shaw, foram influências marcantes, mas faltam outros…tenho a
certeza que faltam outros…..
Descobertas
de final de Séc XX, princípio de Sec XXI: Philip Roth e Coetzee.
Livro
que mais demorei a ler porque estava tão bem escrito que ultrapassar
as primeiras quarenta páginas foi um suplício maravilhoso: «Moby
Dick», de Melville.
Entretanto
já me dei conta que não referi Saramago, nem Gil Vicente ou
Pirandello…isto deixa-me muito inquieta….
A
Helena tem formação em direito. Qual o papel da escrita na sua
vida?
Escrevo
desde muito nova (onde é que já ouvimos isto?).
Comecei
com a poesia e com ela continuei sempre. A prosa veio muito mais
tarde, embora tenha escrito um conto por volta dos 12, 13 anos, de
que me lembro ainda do título: “Rosa Maria Pencuda”. Só aos
trinta e tal anos as tentativas na prosa resultaram em algo acabado.
As tentativas foram sempre no formato curto do conto.
A
formação em direito fi-la sempre com a companhia de outros livros
que não apenas os de direito. Essenciais à minha sobrevivência, os
outros livros que não os de direito. E importantes para a formação
humanista em qualquer escolha vocacional. Nessa altura continuei a
escrever poesia e tentativas de prosa inacabadas, confusas, mal
escritas.
A
escrita sempre me acompanhou e me defendeu. A sua falta
desequilibra-me e a sua permanência desequilibra-me também mas de
uma maneira mais suportável. Escrever consome energias vorazmente
mas dá-nos umas lentes por onde olhar este mundo desajeitado. Não
sei porquê, mas aceitei este trato, o que não tem nada a ver com a
recepção que o livro de contos possa ter.
Ao
escrever fá-lo: por si, para si, ou para quem a vai ler?
Escrever,
independentemente de eu o fazer, e de o fazer bem ou mal, exige
essencialmente liberdade. Claro que há outros factores, claro, o
talento, a técnica, a bagagem, etc, mas tudo isto sem liberdade não
dá coisa muito boa. Portanto, quando se escreve não há qualquer
mentor que não seja a ditadura da história que se quer contar com
as palavras que surgem umas sabe-se lá de onde, bem-vindas palavras
de inspiração, e outras de muito trabalho.
Ao
escrever não penso nunca no outro e nem em mim. A história
supostamente soberana, a música interna das palavras, a composição
das letras, as personagens, levam-me a caminhos às vezes bem
estranhos, exigentes, contraditórios, e não se pode pensar em nós
próprios ou em quem quer que seja, sob pena de quebrar o fio mágico.
Depois do poisio a que fica sujeito o texto escrito volto a ele e
releio e às vezes reconstruo. Às vezes destruo. Nessa fase penso: é
isto que eu queria, é isto que quero? No leitor pensa-se
eventualmente quando se escolhem os textos para formar um livro para
publicação…talvez, não tenho a certeza.
Em
conclusão, não escrevo para mim nem para os outros. Devo escrever
por mim, se não por que o faria?
Numa
palavra, como descreve este seu livro de contos?
A
esta pergunta não sei responder, mas se Aladino me concedesse um
desejo poderia ler ou ouvir alguém definindo o livro assim: só o é
depois de o lermos, mas é!
Já
teve, concerteza, feedback
dos leitores; a imagem que lhe passaram do livro “encaixa” com a
sua enquanto autora? O que mais a surpreende na leitura que outros
fazem das suas palavras?
Não
discuto o seu conteúdo. O livro já não é o livro que escrevi, é
o livro que cada um lê.
Há,
contudo, um ponto comum na reacção que me tem sido transmitida: o
factor surpresa! Dizem-me que os contos surpreendem. A surpresa, como
leitora, é um encontro desejado. É uma alegria imensa quando um
livro me surpreende, uma verdadeira emoção! A surpresa faz-nos
arregalar os olhos e ficar mais atentos! A resposta a esta questão
poderá ser, então: o que mais me surpreende é a surpresa que o
livro tem provocado, segundo me dizem, o que muito me agrada. O conto
vive muito da surpresa…e por isso recebo estas reacções com
satisfação.
Ainda
ninguém me disse que o livro desiludiu, ou que está mal escrito, ou
que é presunçoso (o pior que poderiam dizer), mas a existência
apenas de opiniões benévolas não sei se é bom sinal!
Agora
uma pergunta difícil (sei que o é): qual o seu conto preferido
deste livro?
Sim,
tem razão, a resposta a esta pergunta não é fácil. Mas, pelas
razões que passo a explicar há dois contos que elegeria.
O
conto “Tibério Cisco” corresponde a um parto fácil e só por
isso tem um lugar especial, isto é, nasceu “perfeitinho”. Aquilo
que queria escrever, a ideia e o resultado, ficaram muito próximos.
Também o ritmo, o swing,
deste conto é o que eu pretendia. Esta parte, no meu caso, não é
fácil, a parte de dar o ritmo mais acertado, a melodia própria à
ideia. E quando comecei a escrevê-lo, o que para mim seria o esboço
tornou-se o trabalho final. Claro que houve ajustamentos,
melhoramentos, o tal trabalho de operário de que falam alguns
escritores, mas com este conto o trabalho foi pouco ou nada penoso.
Há
também o conto “Coisa Nossa”. Este deu trabalho! Nasceu de uma
vontade antiga (o conto já foi escrito há uns anos) de apanhar
qualquer coisa que fosse espelho das estradas paralelas em que nascem
homens e mulheres, que espelhasse os caminhos construídos para ligar
as estradas paralelas, mas que não deixam de ser ligações
intermitentes ou incompletas. A esta vontade juntou-se o pretexto, o
“ter apanhado” a tal coisa que procurava há algum tempo….tenho
um amigo que conta muito bem anedotas. As anedotas que escolhe são
muito simples e desconcertantes. É aquele tipo de pessoa – acho
que todos conhecemos alguém assim – que consegue contar a anedota
mais “ordinária” de maneira a que só notemos a inteligência da
piada. Uma vez ao ouvi-lo pensei neste conto, precisamente porque ao
terminar a anedota, já quando todos ríamos, ele referiu
cautelosamente, “se calhar esta é difícil para as meninas, é uma
anedota de e para homens!”. Fez-se o conto aí. Entre o aí e o
resultado foi uma construção e reconstrução. O resultado que
apresento no livro agrada-me e…apaixonei-me pelas duas personagens.
É uma verdadeira história de amor…
Julgo
que o conto “Aqui não mora ninguém” consegue provocar a
melancolia dos lugares abandonados e uma certa solidariedade para com
os diferentes como se fossemos culpados ou semelhantes, e num registo
quase teatral, como pretendia.
E
já vão três contos. A pergunta é de resposta mesmo difícil!
No
outro lado da moeda, o conto “ O bem-intencionado” corresponde a
um ratinho face à montanha que era o conto fantástico que eu tinha
na cabeça. Na minha cabeça era o melhor, o mais arrojado, o mais
bem conseguido. Na minha cabeça tudo estava bem: a ideia, o
desenvolvimento, o ritmo….No concreto, no que ficou efectivamente
escrito, é uma migalha… isso é muito complicado, quando sentimos
que o braço não tem a elasticidade suficiente para apanhar o melhor
fruto ao cimo da árvore! EE
(e prometemos, para breve, a partilha de um dos contos destacados pela Helena; sigam-nos por aqui).
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