sábado, 1 de fevereiro de 2014

Tibério Cisco («Os Nomes do Frio», de Helena Filas Afonso)

Como prometido aqui fica um conto do livro «Os Nomes do Frio». Este é um dos que mais marcaram a autora: leia a agradável conversa com Helena Filas Afonso e saiba porquê.

"Tibério Cisco
i
Tibério Cisco está numa conferência sobre leituras.
Está no liceu. Tem 16 anos.
Na conferência, estão o Ministro da Educação, dois escritores
de literatura infanto-juvenil e um professor da Faculdade de Letras
de Lisboa que lhes fala, este último, do engenhoso fidalgo da Mancha
que ensandeceu lendo e, em consequência disso, se meteu nas
mais belas aventuras.
Tibério Cisco não consegue acompanhar tudo. Fica-lhe a imagem
do professor a falar da figura do intrépido.
Toda aquela gente veio de Lisboa para os incentivar na leitura.
Tibério Cisco é rápido na aprendizagem. Aluno mediano, pois
não está para grandes sacrifícios. É mediano em tudo, desde a matemática
ao português, passando pelas disciplinas de encher tempo.
Tibério Cisco dá uma gargalhada com uma passagem divertida
do professor que fala de loucuras benignas. Alguém lhe diz ao ouvido
“é maricas”.
A partir daí, não ouve mais do que se passa na conferência.
Sabe que falaram de teatro, de mitos, de heróis e de génios que
permanecem ainda vivos neste século, mas sabe porque lho contaram,
não que tivesse ouvido.
De repente, vislumbra uma luz sobre o futuro.
ii
Em casa, Tibério Cisco tem uma família numerosa. Mãe, pai,
quatro irmãos mais novos, avós maternos, uma tia com o marido e
um filho, um tio solteiro e uma tia solteirona.
A casa é espaçosa e tem um quintal. Coube à avó na partilha
dos bisavós.
A casa é frente ao mar.
A casa é húmida no inverno, mas, sobretudo, é barulhenta o
ano todo e às vezes os mais velhos da família zangam-se uns com
ou outros, por dinheiro, por acusações de preguiça contra uns, por
ninharias como não se saber de uma peça de roupa, enfim, a casa é
muito participada e assaz cansativa.
Embora a casa seja grande, o dinheiro é sempre pouco.
Tibério Cisco é um rapaz novo, cara bonitinha, corpo magro,
barriga lisa e feitiozinho rancoroso.
Quer ver-se livre da casa logo que possa.
iii
Tibério Cisco ainda tem 16 anos.
Está na escola.
Na aula de Português, transmite à professora que quer ir para
letras. Nota a surpresa que a sua escolha provoca. Tem que ler mais
se é isso que quer, responde-lhe a professora sem grande paciência
para perscrutar a sua decisão.
Tibério Cisco passa a ler algumas coisas, com pressa, entre um
jogo de PlayStation e uma ida ao café.
Tibério Cisco sai com os colegas da escola. Dá-se distantemente
com quase todos eles. Não tem namorada, embora umas quantas se
ofereçam ao cargo.
Não apanha bebedeiras, nem toca em substâncias menos recomendáveis
para um rapaz da sua idade. Não porque tenha qualquer
posição de princípio contra o álcool ou porque não goste,
nem porque tenha decidido morrer abstinente. Apenas porque não
o sensibiliza a necessidade de exagero líquido ou vaporoso, considerando-
a uma transgressão sem motivo.
iv
Tibério Cisco vê muita televisão e muitos filmes em DVD. Lá
em casa, toda a gente vê muita televisão. Ele recolhe-se no quarto
mais pequeno da casa, que escolheu para poder usufruí-lo sozinho
sem ter que o repartir com um dos irmãos. É lá que vê os filmes e os
seus programas favoritos. Passa também muito tempo no computador.
Os adultos da casa dizem-lhe para ter cuidado com a internet,
mas, fora esta advertência vaga e indecisa, não se intrometem
na sua vida.
Por tudo isto, Tibério Cisco deita-se sempre muito tarde.
v
Tibério Cisco tem agora quase 19 anos. Conseguiu ter média
para entrar em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras de
Lisboa. Conseguiu um apoio para custear os estudos. Conseguiu
alojamento numa residência perto da faculdade. Resolveu tudo
sozinho.
Prometeu aos pais ir pelo menos uma vez por mês a casa. Deixou-
os a chorar. Disse-lhes o devido.
vi
Tibério Cisco anda atarefado em reencontrar o professor que
falou de Rocinantes, Dulcineias e de humor.
Não tem a certeza do que fazer aos Estudos Portugueses.
Conhece novos colegas e decide mudar da residência para um
apartamento mais longe, a dividir com outros três estudantes, que
lhe devolve a liberdade de ter um quarto só para si.
É mais caro. Tem que trabalhar. Passa a fazer uns biscates num
bar, a servir shots e a sorrir para todos os clientes.
Aguenta-se.
Continua a procurar o professor.
vii
Tibério Cisco encontra o professor. Fala-lhe com admiração da
palestra que deu uns anos antes na sua escola.
O professor está envelhecido, com os cabelos brancos que entretanto
ganhou, e também mais baixo.
Tibério Cisco está atraente como um íman, nas suas calças de
ganga com cintura descaída e músculos lombares visíveis nos gestos
espontâneos por baixo da t-shirt justa e curta.
O professor juraria que lhe via os pelos púbicos num aceno
excitante.
O professor mantém as suas calças de tecido vincadas.
Tibério Cisco é bom a rir e a mostrar o interior da sua boca arejada.
Ri-se e tomba distraidamente a cabeça nos ombros do professor.
Diz: “Desculpe”.
O professor desculpa. Passa a desculpá-lo deste gesto assiduamente.
viii
Tibério Cisco deixa hoje a casa que dividia com colegas. Leva
pouco consigo.
Falta às aulas na faculdade.
Bate à porta do apartamento esterilizado do professor. Sorri-lhe.
O professor oferece-lhe o ombro.
ix
Tibério Cisco deixou de ir às aulas. Procura um sentido para a
sua vida. Anda com dúvidas existenciais. Vai ao ginásio libertar-se
de pensamentos compactos que lhe endurecem as veias do pescoço.
Sorri e ri. Correspondem-lhe.
Chega a casa e deita-se na chaise longue.
O professor não está."
 in «Nomes do Frio», de Helena Filas Afonso

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